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Fortaleza, Ceará, Brazil

terça-feira, 21 de abril de 2009

Capítulo Três - O Talismã do Raio

Um homem andava por um corredor escuro, pensativo. Ele tinha de falar com eles, era urgente demais. Cometera um assassinato, tinha certeza que aniquilara seus mais prováveis inimigos. Mas eles tinham lhe escondido algo. Um objeto de poder imenso, que era seu por natureza.
O corredor terminava numa porta preta de madeira. Ela era contornada por um aro de ferro muito enferrujado. Achava aquele lugar nojento, mas precisava estar ali, senão jamais chegaria perto de lá. Sentindo uma imensa náusea ao tocar a maçaneta ensebada, ele virou-a e a porta abriu com um rangido.
A sala era totalmente diferente do corredor de pedra mal iluminado. Era muito bem iluminada, com cores vivas. Suas paredes eram carregadas de prateleiras cheias de numerosos objetos que zuniam, centenas de livros e, bem no centro, acima da lareira em que crepitavam chamas vermelho-sangue, estava um quadro com dois jovens sorridentes, um a cópia do outro.
Passando particularmente longe de um vidro que expelia um líquido viscoso cinza com cheiro de acre, ele alcançou o centro da sala, em que havia uma pequena mesa circular. Nessa mesa repousava uma esfera transparente do tamanho de uma bola de basquete e, ao seu lado, uma sineta.
Ele pressionou o dedo três vezes no botão de cima e o sino tocou brevemente. Logo depois um jovem apareceu de uma porta localizada num canto. Ao chegar, pareceu levemente apreensivo, mas abriu um largo sorriso ao ver quem estava plantado no meio de sua sala.
– Ah, Samuel – disse sorridente – Sabia que viria aqui!
– Claro – murmurou Lycan de mau humor.
O jovem virou-se e gritou para a porta de onde viera:
– Ei, Joe! Veja só quem veio nos fazer uma visita!
Outro jovem cruzou a porta, igualmente apreensivo, mas sorriu ao ver Lycan. O homem percebeu que ele era exatamente igual ao outro.
– Samuel! Sabia que viria! – disse Joe.
– Foi o que disse a ele – respondeu Jake.
– Já chega – explodiu Lycan – Vim porque preciso de uma coisa muito importante.
Os gêmeos se entreolharam.
– Então...? – perguntou Jake.
– Perdi... algo muito importante – respondeu Lycan – E preciso que vocês achem para mim.
– Quando você perdeu isso? – perguntou Joe.
– Há algum tempo.
– Quando? – insistiu Jake.
– Sei lá, alguns meses – respondeu Lycan, irritado – Mas não vejo em que isso vai ajudar!
Jake e Joe começaram a rir.
– Samuel, somos os Gêmeos do Oráculo, filhos de Dinah Passado, é verdade – explicou Jake.
– Mas infelizmente não possuímos o poder de nossa falecida mamãe ou da nossa viva, embora meio ruim do juízo, tia Cassandra Futuro – completou Joe e Lycan teve uma rápida contração ao ouvir o nome da vidente – Apenas vemos o presente.
– Ou seja, se perdeu algo há meses, infelizmente não podemos ajudá-lo.
– A não ser que você procure a tia Cassandra, ela sim vai poder lhe responder o que procura.
– Isto é, se você ainda conseguir ouvir alguma palavra do que ela diz. Ela não fala direito há alguns meses. Foi muito estranho.
– Mas você ainda pode tentar as bruxas Parcas. Elas sim podem dizer o passado, o presente e o futuro.
– O único problema é que faltam meses para o próximo eclipse – comentou Jake – Ou seja, elas devem estar aproveitando agora as praias do Distrito da Água.
– Já imaginou, Jake, as Bruxas do Eclipse de maiô?! – riu Joe.
Lycan estava tentando se controlar, mas não conseguiu.
– Calem a boca! Vocês são inúteis, nem sei porque vim aqui!
– Será que é porque nós somos lindos, Joe?
– Lindo sou eu, Jake. Você é feio.
Os dois caíram no riso outra vez. Lycan deu as costas a eles e murmurou um “Adeus” antes de cruzar a porta. Depois de fechá-la, ele ainda ouviu de um dos Gêmeos do Oráculo:
– Volte sempre, Samuel!
“Quando eu voltar, vocês já estarão mortos”, pensou Lycan amargamente.


Seth abriu os olhos tão repentinamente que ele podia jurar sentir a última luz de seu sonho passar por eles em uma fração de segundo. Se arrependeu disso, pois a luz que entrava pelas cortinas mal-fechadas da noite anterior furou seus olhos amarelos até o cérebro.
Levantou-se de uma vez, esfregando o rosto. Sua cabeça latejava, ainda lembrando das batidas no chão frio do pátio do colégio. Latejava tanto que o garoto resolveu tomar banho para esfriá-la. Foi então que percebeu que devia fazer quase vinte e quatro horas que tomara o último banho. Sentindo-se um lixo, caminhou até o banheiro e trancou a porta.
Observou tristemente sua própria imagem no espelho. Um arranhado vermelho se juntou ao seu queixo e havia marcas de sangue seco embaixo de seu nariz. E, virando-se para outro lado, tirou a roupa vagarosamente e ficou embaixo do chuveiro, a água escorrendo por cada centímetro de seu corpo. Deixou que a água caísse, que levasse consigo todos os seus recentes problemas. Tivera um sonho esquisito, só não conseguia se lembrar...
Enxugou-se, vestiu uma roupa qualquer e desceu. A cozinha, a sala, o corredor e o banheiro estavam vazios, quietos e silenciosos. Seth olhou o relógio, eram dez horas da manhã.
– Vô?
Não havia sinal de Josef, mas a mesa estava posta e, bem no centro, havia um bilhete. Seth apalpou-o entre os dedos e leu-o com a caligrafia do avô.

"Seth,
Não se preocupe, fui ao mercado comprar comida, pois o armário está vazio. Sinceramente, você come demais! A Sra. Diaz ficou de fazer um bolo para mim. Se ela entregar a você, pode deixar na mesa. Tem pão quente no forno.
Vovô Lycanthunder"

Seth dobrou o bilhete e guardou-o numa gaveta. Sentou-se, serviu-se de leite, ovos, pão, queijo, presunto, mortadela, um suco de laranja e uma maçã. Sentindo-se estufado, percebeu que acabara com toda a comida da mesa.
A campainha tocou. Seth levantou-se com a barriga doendo de tanta comida e atendeu a porta.
– Oi, Seth, querido!
– Oi, Sra. Diaz.
A vizinha roliça estava parada na porta, com um sorriso que cortava seu rosto redondo de um lado ao outro.
– Seu avô está? – perguntou ela.
– Hum, não – respondeu o garoto – Ele foi ao mercado.
– Ah, que pena – disse a Sra. Diaz, um pouco desapontada – Bem, não faz mal, contanto que você entregue a ele esse bolo de laranja que acabei de tirar do forno.
– Tudo bem. Vou deixar na mesa para ele.
– Obrigada querido – disse ela, apertando suas bochechas – Até mais.
– Até.
Seth levou o bolo morno até a mesa enquanto refletia como o avô não engordava depois de tanto bolo. Então percebeu que ele é quem comia quase tudo. Teria sorte se um dia não acabasse como a Sra. Diaz.
Enquanto pousava a bandeja em seu lugar, escutou um barulho na caixa de correio. Correu até a porta, atravessou-a, e alcançou a caixa, que possuía o nome falso de Heyfield.
Seth examinou ou envelopes nos dedos.
– Hum... Conta, conta, conta, a revista semanal do vovô, carta do colégio, conta, uma outra carta para mim...
O garoto estranhou a existência de duas cartas para ele. Levou todas para dentro, mas ficou com duas enquanto sentava na cadeira, arrancava um pedaço do bolo de laranja e comia-o.
A primeira era do Colégio Lycantrix, a outra do Prof. Jackson. Resolveu ler a do colégio primeiro.

"Prezado Sr. Heyfield,
Informamos que o senhor foi expulso do Colégio de Ensino Fundamental Lycantrix, por motivos de uma doença grave que o atinge e que vem de sua descendência. Pedimos ao senhor que não tente matricular-se novamente em nossa escola, nem em nossas filiais. Também informamos que seu 'amigo', Prof. James Jackson foi expulso de nossa Instituição por tê-lo ajudado em sua fuga.
Atenciosamente,
Willian Baxter
Diretor da Escola Lycantrix"

Seth ficou boquiaberto. O Prof. Jackson havia sido expulso por sua causa! Somente porque o ajudara a fugir! Rapidamente rasgou o outro envelope, que era apenas uma mensagem de seu antigo professor:

"Seth, enviei essa mensagem o mais rápido que pude, mas não sei se chegou a tempo, não antes da carta oficial da escola. Sei que você vai primeiro ver a carta, por isso quero que saiba que, como você leu, fui expulso. Mas não se culpe, a culpa não foi sua. Já estava cheio do Sr. Baxter, só faltava isso para eu cair fora. Mas sua situação me abriu os olhos para a realidade, para os mestiços. Não se engane, em breve farei uma instituição para acolher os mestiços e dar uma educação a eles, além de abrigá-los. E, quem sabe, seja em sua homenagem o nome dela.
Até breve.
J. J."

– Bom, Seth, cheguei. Nossa, o mercado estava lotado! Comprei umas uvas para você, sei como Elfos gostam de uvas. A Sra. Diaz passou aqui? Seth? O que aconteceu, meu neto?
Seth ficara imóvel na cadeira. O avô estranhou essa atitude e perguntou se ele estava bem. Em vez de responder, entregou nas mãos de Josef as cartas que recebera, especialmente a do professor. Enquanto o avô lia, Seth manteve-se pensativo.
De repente, Josef colocou bruscamente as cartas na mesa e encarou a face do neto.
– Já está na hora de fazer alguma coisa, Seth.
– Como o quê? – perguntou o garoto.
– Ficar aqui sentado é que não. Seth, por acaso eu terminei de contar-lhe a história de Lycan, ontem?
Seth pensou um pouco.
– Não. Eu fui dormir antes do senhor terminar.
– Então venha comigo.
Os dois subiram as escadas que levavam para o sótão. Havia uma porta no teto que dava para o quarto. Josef não teve problemas para levantá-la e, assim, segundos depois os dois estavam lá.
O sótão da casa estava muito empoeirado e cheio de teias de aranha. Seth estava se perguntando o porquê de eles estarem ali, mas mesmo assim não falou nada. Fazia tempo que ele não entrava no sótão, por isso encarou tudo como uma novidade.
Driblando caixas, malas, caixotes e depósitos, Josef chegou ao lugar mais escondido do sótão, de onde retirou uma grande caixa. Então, embaixo dela, surgiu um baú já desgastado pelo tempo e com as iniciais L.T.
– O que significa L.T., vô?
– É a abreviatura de Lycanthunder, filho – respondeu o outro.
Seth resolveu ajudar o avô a puxar o baú, pois o velho não estava conseguindo muito bem. Depois de arrastarem a caixa até o centro do sótão, Josef sentou-se e tentou abrir a tampa com uma chave velha.
– Será que a gente não podia abrir esse baú lá embaixo? – perguntou Seth.
– Não, ele é pesado demais para tirar daqui. Estou quase conseguindo... aqui! Pronto! Seth, me ajude a levantar.
A tampa era a parte mais pesada do baú. Depois de levantada, mostrou-se um livro muito empoeirado e, embaixo dele, vários pedaços de papel que mais pareciam recortes de jornal corroídos pelo tempo, coisa de séculos anteriores.
Josef pegou o livro e soprou-o, o que levantou muita poeira. Depois de tossir bastante, o avô virou as páginas grossas do livro e começou sua história.
– Seth, o que você vai saber agora muitas pessoas não acreditariam. Quando meu pai me contou, eu não acreditei. Mas espero que você compreenda e que acredite nisso.
– Certo – concordou o garoto.
– Bom, o que você sabe sobre Lycan não é de todo verdade, nem de todo mentira. Este livro foi escrito por Cassandra Futuro, uma das Ciganas do Oráculo, há cerca de mil anos. Um pouco antes de Lycan sumir – ele não morreu exatamente – ela olhou para o futuro e escreveu suas anotações aqui. Ou seja, tudo o que está aqui é verdadeiro.
“Como você sabe, Lycan teve cinco filhos. E cada um deles tinha um fragmento do poder da Luz, os cinco elementos da natureza. Como você também sabe, eles retiraram o poder do pai, então ele sucumbiu ao único poder que lhe restou: o poder das Trevas.
“Você também já deve saber que Lycan foi atrás do filhos e tentou tirar os Talismãs deles. Esses Talismãs eram na verdade cápsulas que armazenavam o poder dos elementos. Lycan matou os filhos, mas não conseguiu os Talismãs, que estão guardados até hoje nos castelos que existem nos Distritos. Acho que isso você já sabe.
“Agora o que muita gente desconhece é o fato de que Lycan não se arrependeu de seus atos nem definhou até a morte. Não, ele foi até o fim, atrás dos Talismãs. Consultou todos que poderiam dizer onde estavam. Até que descobriu que os Talismãs eram guardados por titãs e sábios. Mas ele descobriu mais. Uma coisa que podia estragar seus planos... ou até ajudar a realizá-los.
“Acontece que, antes de morrer, Derek Lycanthunder fez um juramento perante aos Deuses e aos Espíritos Anciões. Ele jurou que voltaria depois de mil anos para destruir o legado de Lycan. Esse ser, a reencarnação de Lycanthunder, o escolhido para guiar os herdeiros dos filhos de Lycan, foi chamado de Kathegetes Omega.
– Kathegetes Omega? Porque esse nome?
– Significa “Líder do Fim” numa língua antiga e morta.
– E o que seria esse fim? – perguntou Seth.
– A destruição final. O apocalipse. O fim dos tempos. Chame como quiser. – respondeu Josef.
– Mas... se no final vai tudo ser destruído, pra que esse tal líder guiaria os outros herdeiros até o “fim”?
– Porque você pode decidir o destino de Lycantrix. Se ela vai ser destruída ou não...
– Eu? Por que eu? – perguntou Seth, exasperado, já sabendo o que viria depois.
– Porque você é o Kathegetes Omega!
Seth caiu para trás. Por que ele?!
– Mas... mas... não pode ser eu! Eu... tenho só catorze anos! Como eu posso guiar mais quatro pessoas até o “fim” se eu não posso nem sair nas ruas sem ter o perigo de ser apedrejado ou preso!
– Seth, você está se prendendo muito a essa história de “fim”. Você não vai sair andando por aí com mais quatro amigos pra chegar um dia e acabar tudo! Não! Você tem uma missão!
– Missão? Que missão?
– Sua missão é conseguir os cinco Talismãs antes que Lycan consiga primeiro.
– Lycan... está vivo mesmo? Como o senhor tem tanta certeza?
– Para responder algumas perguntas suas de uma vez, vou ler um trecho do livro para você.

O maligno Lycan então disse: “Já que o poder não consegui conquistar, encobrir-me-ei em um sono profundo até que mil anos se passem e que a batalha comece. O Kathegetes Omega, ó escolhido dos Deuses, guiador dos quatro herdeiros do Bem terei o prazer de derrotar.” Então esperamos o dia em que o herói apareça e derrote o Mal que aflige a nossa Terra.

– Isso quer dizer que... eu só sou o escolhido porque faz exatamente mil anos depois que Lycanthunder jurou que voltaria, não é?
– Finalmente você compreendeu que isso não foi decidido há muitos anos. Você só é o Kathegetes Omega porque é o herdeiro de Lycanthunder que nasceu exatamente no mesmo dia da morte dele. – disse Josef.
– Certo. Sabemos que sou o escolhido para sair recolhendo os Talismãs. – disse Seth. – Tem só um pequeno problema que o senhor ainda não respondeu: onde Lycan está?
– Isso ninguém sabe. – respondeu o avô misteriosamente. – Dizem que Lycan construiu um castelo para si, há mil anos. O problema é que ninguém sabe onde fica.
– Ah, que interessante. – resmungou o garoto, amargurado – Então, eh... por onde eu começo mesmo?
Josef pensou um pouco, em silêncio.
– Bem – disse ele, lentamente. –, talvez pelo Talismã do Raio. É o que está mais perto da gente agora.
– E como eu passo pelo tal titã? Melhor: como eu pelo menos entro no castelo? Tenho plena certeza de que eles não vão me deixar entrar lá. E como eu acho os outros herdeiros? Como eu...
– Calma, Seth – falou Josef, rindo. – Que tal parar de fazer tantas perguntas? O livro vai ajudá-lo bastante. Preste atenção nesta passagem: “Nota ao Kathegetes Omega: você irá encontrar todos os herdeiros em um só lugar.”
– Um só lugar? Mas que lugar é esse? Quando vou encontrá-los?
– Isso eu não sei – respondeu o avô. – Não fala aqui.
Então o velho começou a imaginar onde o neto poderia encontrar quatro herdeiros de Lycan.
– E... o que é isso aí mesmo? – perguntou o garoto, tentando fazer o avô acordar de seus devaneios.
– O quê? Desculpe, Seth, não ouvi.
– Ah, esses papéis que estavam embaixo do livro.
O velho olhou para dentro do baú e retirou o amontoado de papéis velhos.
– Ah, são recortes de jornal. – explicou ele – Oram, vejam só: do tempo de Lycan! Escritos à mão! Nunca tinha reparado neles antes...
Seth deixou o avô examinado os recortes e foi dar um passeio pelo sótão empoeirado. Foi olhando lentamente as malas, maletas, caixas, engradados e caixotes. Alguns tinham até conteúdos bem interessantes. Havia um caixote cheio de garrafas com líquidos viscosos e brilhantes. O garoto queria pegar um para ver o que era, só que estava muito alto e ele não conseguiu alcançar nem com as pontas dos pés. Mas estava tão perto...
– Aaaaarreeeeeee!!!
Catapum!
Várias coisas aconteceram num intervalo de poucos segundos. Seth, que estava na ponta dos dedos, escorregou e caiu sobre a pilha de malas. Todas elas caíram sobre o garoto; o caixote caiu com estrépido e todas as garrafas se espatifaram no chão. O líquido viscoso errou a cabeça de Seth por pouco e o ácido corroeu o piso e abriu um buraco de onde dava para ver o segundo andar da casa.
– Você está bem, Seth? – perguntou Josef desesperado, que largara os jornais no chão e correu para socorrer o neto.
– Sim, mas essas malas são muito pesadas. – respondeu o garoto, dolorido. – O que é que tem nelas?
– Hum, várias coisas, livros, coisa velha da antiga mudança... – respondeu o avô, que examinava o buraco deixado pelo ácido.
Mas uma coisa atraiu a atenção de Seth naquele momento, e não era a sua sorte de ter escapado por pouco da mira do líquido. O papel de parede que ficava atrás da pilha de malas estava descascado, mas não mostrava uma sólida parede de tijolos, como as outras. Não, era um buraco, de onde saía uma fraca luz amarelada.
– Mas o que é isso?
– Quê? – perguntou Josef, distraído.
Então se deparou com o neto rasgando o papel de parede, mostrando um pequeno túnel do tamanho de um armário de vassouras.
– Seth o que você está...?
Seth não precisava ter dado um grito de extrema surpresa para atrair a atenção do avô para o buraco. Foi então que seu coração quase parou quando viu o que estava em sua frente.
Entre teias de aranha, em cima de um pedestal, jazia um medalhão do tamanho de um ovo de cisne. Arredondado na frente e plano atrás, como se tivessem passado uma navalha extremamente precisa, o objeto que estava nas mãos de Seth parecia ser feito com o cristal mais duro do universo. E, de dentro dele, uma espécie de fumaça amarela enchia todo o espaço onde, na frente arredondada da cápsula, estava desenhado um raio negro, da cor do contorno do objeto.
– Não pode ser... – balbuciou Josef – Não aqui...
– Acho que não é só isso, vô – disse Seth, apontando para sua frente.
E, como se não bastasse, atrás do Talismã do Raio haviam duas espadas enterradas no cabo até a bainha. O garoto e o avô se precipitaram para frente das espadas e as arrancaram das teias de aranha da parede. Enquanto Josef ficou admirando a bainha tricolor de vinte centímetros de uma das espadas – branco, amarelo e preto – e passando seus dedos longos nos raios gravados nela, Seth arrancou o cabo de uma só vez e observou admirado.
As lâminas de um metro e dez centímetros de comprimento pareciam ser feitas da prata mais reluzente que existia. O garoto pensou em girar a espada para comprovar sua extrema leveza, mas seria um perigo num túnel apertado daqueles.
– Isso é impossível – disse Josef. – Como isso pode ter vindo parar aqui? Não, tem alguma coisa errada nessa história.
– Relaxa, vô – comentou Seth enquanto vislumbrava a espada.
O garoto sempre fora fissurado por espadas desde pequeno, e sabia o nome de cada uma delas. Aquelas espadas eram uma mistura de sabres com katanás, uma mais bonita que a outra. Foi então que percebeu a presença de pequenos pinos de encaixe na lâmina e na bainha.
– Vô, me arranja essa outra espada, por favor – pediu Seth.
A segunda tinha pequenos buracos em vez de pinos. Seth encostou as duas espadas, com um pequeno giro, uma se encaixou perfeitamente na outra, formando uma larga espada de duas mãos.
Seth deu um sorriso de alegria, que não foi compartilhado por seu avô, que continuava no mesmo lugar, murmurando.
– Ah, Josef, se acalma! Foi uma sorte danada, pelo menos não preciso mais ir atrás do Talismã do Raio, ele veio fácil, fácil, para mim...
– Mas... isso não tem lógica! Como...
– Será que não é um túnel? – perguntou o garoto, passando os dedos na parede. – Um túnel que dá no castelo?
– Não dá, estamos no sótão, se fosse no porão, pelo menos... – murmurou Josef.
Seth deu a volta no pedestal e rumou para o sótão.
– Bom, vou no quintal, testar a espada. E vou levar o Talismã também – disse pegando o objeto – Irei ver se dá certo em mim.
E saiu. Depois de alguns minutos, Josef acordou de seus pensamentos com um tranco e correu até uma janelinha que havia no sótão que dava para o quintal.
– Seth, não! – gritou ele lá de cima.
O garoto estava com a espada larga numa mão e o Talismã na outra. Ao ouvir o grito do avô lá de cima, gritou em resposta:
– O quê?
– Seth, pelo amor dos Deuses, não ponha o Talis...
Mas já era tarde demais. Assim que a fria corrente passou pela sua cabeça, coisas indescritíveis aconteceram com seu corpo em segundos.
Uma onda elétrica correu por seus ossos, dando uma sensação impressionante, ao mesmo tempo em que seus braços engrossaram um pouco e seu corpo levitou; ele sentiu círculos de energia ao seu redor e uma coragem súbita se apoderou dele, uma coragem que o fazia sentir que podia encarar qualquer desafio. Então, do mesmo jeito que começou, acabou. Ele caiu no chão estatelado e uma vontade suprema se apoderou dele.
Seth separou as duas espadas e, manuseando-as como sempre tivesse feito isso, ele saiu rapidamente em direção ao pomar. Com uma agilidade e uma destreza impressionantes, o garoto podou as árvores que Josef ia limpar e, com dois golpes rápidos, dividiu um tijolo em quatro partes iguais.
Espantado com seu feito, olhou para cima e encarou divertido o rosto petrificado do avô na janelinha lá em cima.
Em questão de minutos, Josef já estava no quintal e, contemplando o neto, disse:
– Seth, isso é realmente impressionante!
– Veio com o Talismã – disse o garoto animado – As habilidades.
Mais sério, o avô chegou mais perto.
– Mas você sabe o que isso significa, não é?
– O quê? – perguntou Seth.
– Você já pode ir atrás dos Talismãs, Seth – respondeu o avô – E quanto antes melhor, sabe. Provavelmente Lycan já acordou.
– Acordou que você diz...
– Sim, ele conseguiu se manter vivo à base do sono profundo. Mas já se passaram mil anos.
– Certo.
Ele queria por tudo adiar a partida, mas percebeu que ele não podia fazer nada para escapar do que lhe esperava.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Capítulo Dois - A História de Josef Lycanthunder

Seth correu o máximo que pôde, mas suas pernas, que antes pareciam ter recuperado a força, começaram a fraquejar e amolecer, até que ele caiu. Nunca sentira tanta dor na vida. Suas costelas ainda sentiam os pés dos amigos de Roger que o chutaram, seu nariz ainda não se recuperara das constantes batidas que o líder do quarteto de mal-encarados esmagara contra o chão do pátio. Mas havia uma coisa que doía mais do que tudo: a dor do preconceito. Então ele era um mestiço, fruto da cruza de dois seres diferentes. Afinal, ele tinha um motivo para ser discriminado. Mas por quê?
Então uma espécie de queimação ardeu em sua garganta, e Seth sentiu sede. Uma sede descomunal tomou conta de seu corpo, e ele estava no meio de um deserto. Como fora parar lá? Com certeza deve ter pegue um caminho diferente sem querer. Logo agora que se mudara para o Distrito do Raio. Será que nesse Distrito haveria uma área desértica?
De repente um sentimento novo invadiu seu peito: medo. Iria morrer ali, de dor e de sede, e nunca chegaria em casa, rever seu avô, perguntar para ele por que era um mestiço, por que nunca conhecera os pais...
Uma sonolência tomou conta de Seth. “Vou morrer, não posso morrer, tenho que me manter acordado...” pensou. Suas pálpebras foram abaixando, o sono chegando... Ele sentia que se dormisse nunca mais iria acordar... Então ouviu ao longe um bater de patas na areia. Tinha que se manter acordado, tinha que pedir ajuda... Mas era um esforço além da conta ficar de olhos abertos...
Seth sentiu um animal quadrúpede parar ao seu lado. Escutou uma voz masculina, enquanto um homem descia da montaria cheia de bugigangas e se agachava ao seu lado. O garoto abriu a boca para falar, mas não saiu som.
– Garoto. Garoto! – insistia o homem balançando-o levemente – Está vivo?
– Hum... sim – respondeu Seth com a voz rouca.
– Graças aos Deuses! Olhe só seu estado! Você está bem?
– Não – respondeu o garoto – Quero ver o meu avô.
O homem o pôs sentado. Seth pôde ver que ele tinha cabelo e barba grisalhos, além de um rosto bondoso.
– Tudo bem, vou levá-lo ao seu avô. Como você se chama, meu jovem?
– Seth – respondeu – Seth Heyfield.
– Certo Seth – disse ele – Sou Wallace Vankster. Suba aqui no George que eu vou levar você a um lugar seguro.
– Subir em quem? – perguntou Seth, preocupado.
– No George, meu gromt. Vamos – e colocou-o de pé.
Seth ia perguntar o que era um gromt, mas viu que era um camelo de três corcovas e patas cascudas. George estava apinhado de objetos como panelas, uma rede e algo que parecia uma tenda enrolada. Parecia que Wallace estava viajando há muito tempo.
– Espera aí – disse Seth enquanto o homem o punha na corcova do meio – Eu preciso falar com o meu avô.
– Vou te levar a um lugar seguro e quando você estiver em melhores condições, você fala onde é a casa do seu avô, certo Seth?
– Tudo bem – respondeu – O senhor tem razão.
Então a vista de Wallace caiu no nariz do garoto.
– Hum, esse nariz está horrível.
Seth tocou no nariz. Havia um calombo lá e tinha muito sangue escorrendo.
– Espera aí, tenho a solução – disse Wallace remexendo nas trouxas fixadas na última corcova do gromt, de onde tirou um pacote com pedras transparentes – Agora, se me permite... Assim.
- AAAAAAAARRRRRRREEEEEEE!!!
O homem colocou um polegar por cima do outro e pressionou o nariz de Seth. Ouviu-se um estalo horrível e o garoto começou a berrar de dor. Rapidamente Wallace encostou o pacote no nariz de Seth, e a dor sumiu no mesmo instante, assim como o sangue parou de escorrer.
– É gelo místico, ganhei um pacote quando estive no Distrito da Água. Agora é só deixar assim que em pouco tempo sara completamente – disse Wallace. Então sua visão fixou-se em alguma coisa ao lado da cabeça do garoto e o homem fez uma careta bem discreta.
Wallace amarrou o saquinho no rosto do garoto e subiu no gromt, e o mesmo começou a andar. Com o balanço de George e seu andar desengonçado, sem falar no sono que há muito persistia em tomar conta de Seth, o garoto foi fechando os olhos até que dormiu profundamente. Seu corpo foi escorregando e encostou nas costas de Wallace, que soltou um calafrio, talvez por causa do gelo místico ou por qualquer outro motivo.


Seth acordou com muita dor nas costas. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que visualizou foi que estava deitado sobre cinco centímetros de cimento frio. Seus olhos acompanharam o final do concreto, que era pendurado por grossas correntes metálicas pretas. Imaginando que lugar teria uma cama assim, sua audição captou o motivo pelo qual acordara.
Havia dois homens discutindo às suas costas, um deles gritando a plenos pulmões. Seth ficou só ouvindo.
– Como assim, só essa mixaria?
– Infelizmente Sr. Vankster, nós só podemos lhe dar isso. É todo o dinheiro que possuo.
– Vinte Lycandollars é tudo o que você tem? Vinte Lycandollars?!
– Mas Sr. Vankster, o que o senhor trouxe não é nada de mais!
– Nada de mais? É um mestiço, seu policial idiota! Pensei que dessem dinheiro para os que capturavam essa raça nojenta!
– O problema, Sr. Vankster, é que temos recebido vários mestiços durante o inverno e a delegacia ficou sem dinheiro!
– Você sabe o que foi persuadir esse imbecil pestilento?Eu podia ter deixado-o morrer lá, mas eu o trouxe aqui, fingi ser bonzinho e o que é que eu ganho? Vinte Lycandollars!
– Mas...
Seth levantou-se de uma vez. Arrependeu-se de ter feito isso, acabou por ficar zonzo por alguns segundos. Se pendurando nas frias grades negras da cela, Seth ficou cara a cara com os dois homens.
– Sr. Vankster?
Wallace virou-se tão rápido que o policial pensou que o homem fosse cair. Em vez disso, ele ficou contemplando o rosto lívido do garoto.
– Eh... Seth?
– Sr. Vankster, é verdade o que o senhor falou? – perguntou Seth com os olhos embargados.
Uma vergonha gigantesca pareceu invadir o corpo de Wallace, que fez o mesmo contemplar os pés.
– Desculpe-me Seth, eu precisava do dinheiro...
– Precisava nada! – debochou o policial atrás do balcão – Ele é um mercenário, garoto! Fazem de tudo por uma grana fácil!
– Não é exatamente assim! – disse Wallace.
– E como é, então? – perguntou Seth.
Em vez de responder, Wallace saiu quase que correndo da delegacia. Então, uma gota de lágrima percorreu o belo rosto de Seth, enquanto o policial falava com a voz cansada.
– É a vida, garoto. E vai se acostumando com esse lugarzinho que você vai passar um bom tempo aí.
Seth virou-se e escorregou pela grade negra, sentando de costas para o policial que, Seth percebeu, saiu detrás do balcão e adentrou a delegacia um tempo depois.
Foi então que Seth reparou num corpo na escuridão, do outro lado da cela. Aproximou-se dele e o tocou. Um garoto ergueu-se com um tranco e observou decepcionado o rosto de Seth, como se pensasse que era outra pessoa.
– Eh... tudo bem? – perguntou Seth. De repente levou um susto quando reconheceu o rosto; era Brad, o garoto que havia sido levado pelos policiais mais cedo.
– Sim. Você foi capturado também?
– É... Fui.
Brad resolveu sair da sombra e contemplou Seth. Não devia ter mais do que doze anos. Seu rosto estava manchado de uma lágrima que não fora enxugada.
– Então você é um mestiço também. Eu sou filho de uma humana com um Elfo. E você?
– Eu... sinceramente não sei – respondeu Seth.
– Ah. Bom, obrigado por perguntar se eu estava bem. Você é muito gentil, Seth.
– Como sabe meu...
– Ouvi aquele homem gritando – disse Brad com um sorriso. – A propósito, eu sou Brad. Prazer em conhecê-lo.
Seth então viu que Brad tinha orelhas pontudas e olhos de pupilas verticais que pareciam lâminas. As pupilas de Seth também eram verticais, só que mais espessas. Brad se recolheu no mesmo canto e voltou a dormir, deixando o outro a ver apenas a escuridão de onde ele veio.
A tarde se passou rapidamente e a noite adentrou a delegacia. Alguma coisa apertou no coração de Seth: sempre odiara o crepúsculo. Trazia para o garoto uma espécie de desamparo.
Parecia que fazia dias que fora para a escola pela primeira vez. Então, de repente, um sentimento de culpa se apoderou de seu peito. E se o Prof. Jackson tiver sido descoberto por ter ajudado Seth? E se tiver sido despedido? A culpa era toda dele.
Seth já estava se incomodando de ficar solitário. Nunca tivera medo da solidão, principalmente quando o avô precisava fazer longas viagens para outros lugares, sempre com a recomendação de não falar com ninguém. Agora fazia sentido. Fazia isso para não bancar o idiota, acreditar num rosto bondoso e acabar preso como agora.
“Não existem pessoas que não sejam preconceituosas hoje em dia, seu bobo”, pensou amargamente.
Então um ruído de movimentação vindo da entrada sobressaltou Seth. Um homem relativamente magro adentrou a delegacia e foi diretamente falar com o policial no balcão.
– Com licença, autoridade – disse ele – Me chamo Frederic Grints.
– Pois não, Sr. Grints – respondeu o policial – O que o senhor deseja? Boletim de ocorrência? Assalto? Seqüestro?
– Não, não! Graças aos Deuses, meu senhor! – riu o homem que, como Seth viu, tinha cabelos grisalhos e uma voz cansada.
– Então o que o traz aqui? – perguntou o policial, curioso.
– Ah – disse o velho – Um senhor acabou de me informar que colocou um mestiço aqui há algumas horas, correto?
– Sim. Exatamente isso.
– Ótimo. Bom, quanto o senhor pagou a ele, autoridade? – perguntou o velho com um tom de educada curiosidade.
– Vinte Lycandollars. Por quê? – indagou o policial, chegando mais perto.
– Bom, sou um colecionador de mestiços – respondeu o velho – Servem bem como escravos, sabe. E acho que mais um me beneficiaria mais.
O coração de Seth parou. Quem quer que fosse aquele idoso era colecionador de escravos. E, em breve, ele se tornaria um.
– Hum, vinte Lycandollars? Foi o que ele lhe pagou? Pois bem, vossa autoridade, lhe darei cem Lycandollars por ele. O que o senhor acha?
O policial avaliou o dinheiro nas mãos enrugadas do velho enquanto pensava.
– Cem Lycandollars por esse mestiço nojento? Mas para que tudo isso?
O velho pareceu suar frio.
– Bom, é o melhor mestiço que já encontrei. Com certeza está em melhores condições que os outros que possuo em minha mansão.
Então o velho virou-se e encarou Seth.
O coração do garoto deu uma guinada. Lá estava ele, irreconhecível vestindo uma roupa refinada, os cabelos penteados com gel, portando um pincenê de ouro no rosto e numa postura digna de realeza: o Josef Heyfield, avô de Seth.
– Bem, é verdade – concordou o policial, avaliando Seth de cima a baixo – Tudo bem, cem Lycandollars está de acordo.
Josef entregou o dinheiro ao policial, que o guardou em uma bolsa de couro. Em seguida, ele procurou alguma coisa de baixo do balcão e tirou uma chave prateada e um par de algemas.
– Ah, meu caro policial, talvez não precise de algemas, quero preservar os braços dele – disse o Josef – Vou colocá-lo para receber as minhas visitas. Assim vou poder finalmente substituir meu escravo banguela.
Seth engoliu a risada, poderia estragar o disfarce. As únicas visitas que recebiam eram do carteiro e da Sra. Diaz, uma vizinha roliça que sempre levava bolos ao avô de Seth.
O policial abriu a cela e saiu chutando Seth para fora dela.
– Vamos logo, seu mestiço imundo, vai para a mansão do Sr. Grints, servir de escravo para o resto da vida – disse rindo.
Uma vez fora da cela fria, Seth ficou de pé e encarou os olhos do avô, que lhe deu uma piscadela imperceptível ao policial.
– Foi um bom negócio com o senhor, Sr. Grints. Tenha uma boa noite.
– Igualmente, senhor... – Sr. Heyfield olhou no crachá do policial – Diank.
– Vamos, mestiço nojento – disse o Sr. Heyfield, imitando uma voz autoritária – Vamos que você tem muito trabalho hoje.
Josef segurou o ombro do garoto desconfortavelmente e o arrastou para longe. Seth deu uma última olhada na cela e, observando Brad, pediu mentalmente que o garoto tivesse sorte mais para frente. Só quando fizeram uma curva e ficaram imperceptíveis, o avô o largou.
O velho olhou para trás. Verificou se vinha mais alguém, então olhou nos olhos do neto e riu.
Os dois ficaram rindo um tempão. A noite já ia longe quando eles conseguiram tomar fôlego e conversar.
– Vô, onde o senhor conseguiu essa roupa? – perguntou Seth, rindo.
– Bom, consegui emprestado com a Sra. Diaz. O pincenê, lógico. As roupas eu achei no nosso sótão. Está na nossa geração há anos, pensei que você fosse me reconhecer nelas assim que entrei.
– Impossível – disse o garoto – Com esse penteado e os óculos dourados, era impossível...
– Seth, por que você tirou os óculos escuros e a touca?
A pergunta o pegou de surpresa. O avô, que antes estivera risonho, agora estava estranhamente sério.
– Quê? – perguntou Seth.
– Por que você tirou os óculos e a touca? – repetiu Josef.
Seth encarou os próprios pés.
– Bom, eu não tirei. Tiraram de mim.
– Como assim?
Seth contou a história toda. Desde a aula até a perseguição no colégio, deste o espancamento até a fuga, desde o encontro com Wallace até a prisão.
– A propósito, vô, como soube que eu estava preso?
– Como eu disse, um senhor foi lá em casa e disse onde você estava e o que ele tinha feito.
– Wallace!
Caiu a ficha. Foi Wallace que fora até a casa do avô e contara seu paradeiro.
– Como ele pôde? Depois do que fez comigo!
– Seth, ele parecia estar arrependido, sabe.
As entranhas do garoto reviraram. Wallace arrependido?
– Ele disse que você era um bom garoto – explicou o avô – E que queria ver você uma outra vez, no futuro. Sabe Seth, ele parecia ser uma pessoa bondosa.
– Mas...
– Seth, ele admitiu que agiu mal, que estava envergonhado e que queria que você o perdoasse – disse o Josef, sério – Não é qualquer mercenário que faz isso, entende?
Então ele era uma boa pessoa. Sempre fora.
– E como ele sabia onde era a nossa casa, vô? – perguntou Seth.
– Bom, ele me disse que ouviu você falar inconscientemente para ele enquanto dormia – respondeu o avô, rindo – Foi bem estranho.
Seth observou as estrelas. Tinha uma pergunta que ele queria fazer a muito tempo e que lhe estava remoendo o peito. Só não sabia como.
– Vovô, por que eu sou um mestiço? – perguntou, reunindo toda a coragem que conseguiu juntar.
O avô fora pego de surpresa.
– É, Seth. Sabia que um dia ia me perguntar isso assim que percebesse. Sim, meu neto, você é um mestiço. Uma bela criatura fruto do amor infinito entre dois jovens: um humano, meu filho, e uma Elfa. Sim, Seth. De seu pai você herdou a coragem. De sua mãe, certamente a beleza.
– Coragem? – perguntou Seth, incrédulo – Se eu tivesse coragem, não estaria todo estropiado agora.
– Mas você foi corajoso, Seth. Enfrentou aqueles valentões com bravura. Se você apanhou, isso é uma questão de força, não de coragem. Como eu disse, de sua mãe você certamente herdou a beleza. E isso inclui as orelhas e os olhos. Essa é a marca mais aparente de um mestiço: a característica de outro ser.
“Tudo começou numa primavera, há catorze anos, no Distrito do Raio, exatamente aqui. Dois jovens se apaixonaram perdidamente. Peter e Flora. Um humano comum, filho de um marceneiro um tanto pobre se apaixonara por uma linda Elfa aquariana.”
– Aquariana?
– É o nome que se dá a quem nasce no Distrito da Água. O mesmo se dá aos raiosenses, aos fogoanos, aos arienses e aos terranos.
Bem, ele pedira para saber o porquê de ser um mestiço, mas descobrir sua origem também podia ser bem interessante.
– Ah, Seth, foi aqui que você nasceu.
– No Distrito do Raio?
– Sim.
– Mas o senhor disse que eu tinha nascido no Distrito da Terra!
– Mais uma vez para proteger você.
Seth engoliu em seco.
– Continuemos então. Flora engravidou de Peter e eles rumaram para cá, para que você nascesse exatamente onde eles tinham se conhecido. Mas, nem bem você fez um ano de idade, eles foram perseguidos até a morte. A sorte é que eles me entregaram você a tempo.
“Aí está a sua resposta, Seth. Mas, se quiser saber mais sobre suas origens, deve me acompanhar.”
Eles prosseguiram a conversa caminhando, rumando para o caminho de casa. Eram muitas revelações por um dia e Seth gostaria de ir para casa dormir.
– O senhor disse mais? O que tenho que saber mais?
– Você não é um garoto comum, Seth.
– Eu sei. Sou mestiço, não?
– Não é só isso, Seth. Tem mais.
Mais? O que mais ele seria?
– Como assim? – perguntou Seth.
– Suponho que nunca lhe contei sobre a história de Samuel Lycan, estou correto?
– Sim, tive que pedir ao meu professor para contar a história mais ultrapassada que meus colegas já ouviram – respondeu o garoto, zangado.
– Então sabe a história toda, não é?
Seth rodou os olhos nas órbitas com impaciência.
– Sim. Foi um grande feiticeiro que possuía o poder do Equilíbrio, teve cinco filhos que tiraram os poderes do Bem dele, Lycan matou os filhos por causa de uns tais Talismãs, caiu no arrependimento e morreu, estou correto?
– Não.
A resposta o pegou de surpresa.
– Como assim, “não”?
– A história não é assim. Pelo menos em parte – respondeu Josef. – E, como costumo dizer, uma meia-verdade é sempre uma mentira inteira.
– Mas foi o que o Prof. Jackson nos ensinou...
– Ensinou errado, Seth. Mas não o culpo por isso. E estou aqui para lhe contar, como um legítimo herdeiro de Lycan.
Seth sentiu uma bola de chumbo escorregar pelo seu intestino. O avô? Herdeiro de Samuel Lycan?
– Exatamente, Seth – disse Josef, adivinhando os pensamentos do neto – Você sabe, não é, que Lycan matou os filhos? Pois é. Mas seus herdeiros deixaram para trás, ao morrerem, esposas e esposos, com filhos. Ou seja, existem herdeiros de Lycan espalhados por esse planeta todo.
“Assim como os irmãos, Derek Lycanthunder deixou uma esposa e um filho. E é essa criança que nos originou ao longe de quase mil anos. O sobrenome Heyfield é apenas um disfarce, assim como essa roupa que estou usando agora. Meu nome verdadeiro é Josef Lycanthunder.”
Então, se o nome do avô tinha esse sobrenome, então é porque...
– ... Eu também tenho – concluiu Seth – Sou Seth Lycanthunder, então?
– Exatamente. Assim como seu pai era Peter Lycanthunder e por aí vai.
– Mas como saber se sou mesmo herdeiro de Lycanthunder? – perguntou Seth.
– Ah, veja esses cabelos! Loiros como os de Derek! Os meus também já foram assim – disse o avô, alisando os cabelos grisalhos. Seth abafou uma risada.
– Os olhos também são característicos. Quem mais tem esses olhos da cor do topázio? Só os descendentes de Lycanthunder!
– É vô, o senhor me convenceu. Mas eu gostaria de dormir um pouco, aconteceram coisas demais para um só dia.
– Mas Seth, não lhe contei a história de Lycan ainda! – insistiu o avô.
– Amanhã, vô – disse Seth entrando em casa, fora incrível como chegaram tão rápido.
– Tudo bem, então. Boa noite, Seth.
– Boa noite, vovô Lycanthunder – disse Seth sorrindo, enquanto subia a escada em espiral que dava para seu quarto com banheiro acoplado.