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Fortaleza, Ceará, Brazil

sábado, 30 de maio de 2009

Capítulo Cinco - Os outros herdeiros de Lycan

Fazia uma manhã quente aquele dia em Lycantrix. Uma fila de pessoas se aglomerava para entrar numa espécie de tenda marrom desbotada em que se lia: Frida McSagore – Cigana Vidente.
Cinco crianças passaram correndo pela fila, afinal, elas estavam aproveitando um dia claro de verão que há muito tempo não se fazia no Distrito do Ar. A cabana da vidente McSagore ficava no parque de diversões do Distrito, e todos os dias havia uma fila de pessoas querendo que a cigana lesse suas mãos, ou visse seu futuro com suas cartas velhas e sebosas.
Um homem encapuzado estava na fila, esperando. Ao ver as cinco crianças se amontoando para comprar algodão doce, ele se lembrou imediatamente da infância de seus cinco filhos, quando ele e a mãe das crianças vinham brincar no mesmo parque. Mas isso era passado. Seus filhos haviam sido assassinados brutalmente há seis meses, e os jornais locais e mundiais continuavam com matérias sobre o Caso Lycan.
A fila prosseguiu. O homem encapuzado se assustou com uma mulher que saíra gritando da barraca dizendo que ia ganhar na loteria. “Isso é normal”, pensou ele. Sentiu vontade de explodir todos da fila, seus assuntos eram mais urgentes do que os dos outros. Agora sentia essas vontades repentinas de explodir tudo, ao mínimo sinal de raiva ou estresse.
– Esse caso ainda não se resolveu, Bones? – perguntou uma mulher a um senhor de idade na fila, apontando para o jornal.
– Não, Regina. Ainda não. – respondeu Bones.
– Estranho, né? Os filhos desse Lycan morreram todos de uma vez. E o pai sumiu depois. Acha que ele tem alguma coisa a ver com isso? – perguntou Regina.
– Sabe, Regina, não sei se Lycan fez isso. Você sabe, foi ele quem evoluiu nossa cultura. Acho improvável que ele tenha cometido esse crime brutal, ainda mais com os próprios filhos.
– É, Bones. Mas sempre nos surpreendemos com o caráter das outras pessoas. Você mesmo é a prova disso. Seu cunhado, aquele bêbado, matou a família toda e ninguém sequer suspeitou que era o próprio...
– Regina, você está comparando meu cunhado a Samuel Lycan?
– Sim. Tem algum problema nisso? Que eu saiba, Lycan é uma pessoa normal como todo mundo.
– Bom, essa é a sua opinião...
– Pois é. Mas por que este senhor não anda? Ei você, anda logo, a gente não tem o dia todo!
O homem encapuzado levou um susto, pois estava escutando com atenção a conversa e esquecera que já estava na sua vez. Assim, apressado, entrou na barraca desbotada e suja da cigana.
Frida McSagore era uma velha baixinha que, sentada em seu banquinho de madeira, quase sumia por baixo da mesa. Ao entrar, a cigana pediu ao homem para sentar-se num banquinho imundo em frente a ela. Mas, em vez disso, o homem tirou a capa e se mostrou à anciã.
– Samuel Lycan! – exclamou Frida.
– Sim, sou eu – disse Lycan – Sabe por que eu vim aqui hoje nesse local imundo, sra. McSagore?
– Sinto muito, senhor Lycan. Não faço idéia.
– Ótimo, vou explicar a você.
Lycan, sentindo uma repugnância terrível, sentou no banquinho de madeira e se inclinou para a velha, que cheirava a alho e gatos.
– É o seguinte: ainda faltam alguns meses para o eclipse e eu precisava me consultar com as bruxas Parcas. Mas acontece que eu perdi uma coisa muito importante e eu não posso ficar muito tempo sem saber onde estão. Agora use isso que você chama de clarividência e me diga onde está o que eu perdi. Agora. – disse Lycan em tom baixo e ameaçador.
Frida, assustada, ergueu os braços fracos para pegar na mão de Lycan. Com imensa repulsa, o feiticeiro deixou que a cigana lesse sua mão, passando seus dedos longos e finos na palma da mão dele.
Mas, a cada momento no qual ela tocava na mão de Lycan, a cigana levava um calafrio que sacudia seu corpo frágil. De repente, ela levantou do banco com estrépido e encarou o rosto de Lycan com ódio e repulsa pelo feiticeiro.
– Você... Samuel Lycan... – disse ela, com o dedo em riste na direção do feiticeiro – Você matou seus filhos! VOCÊ OS MATOU! POR GANÂNCIA!
– É, foi isso mesmo – respondeu Lycan.
– Você quer os Talismãs... Os Talismãs do poder... Os Talismãs dos seus filhos!
– Sim, sim, eu quero – disse o feiticeiro, entediado – Me diga logo onde eles estão, vamos poupar tempo...
A cigana arregalou os olhinhos.
– Nunca! Eu nunca diria onde eles estão!
Lycan se levantou rapidamente com um olhar ameaçador.
– Como é que é?
– ISSO MESMO! Seus filhos sacrificaram suas vidas para proteger esse poder. Ele deve permanecer seguro, ele não deve ser de ninguém!
Frida recuou-se para o fundo da tenda enquanto Lycan se aproximava cada vez mais.
– Essa é a sua última chance, sua velha imunda. Onde estão os Talismãs?!
– Eu vejo muito sangue em seu caminho, Samuel Lycan. Sem os Talismãs. Que dirá com eles! ISSO EU NÃO VOU DEIXAR! – e cuspiu no rosto do feiticeiro.
Lycan retirou a saliva grossa do rosto e apontou a mão para a cabeça da cigana.
– Resposta errada.
Antes que ela tivesse tempo de gritar, já estava morta no chão, vítima de um feitiço de lampejo vermelho de Lycan. Antes que alguém resolvesse entrar na cabana, o feiticeiro já abandonara o local com um só pensamento:
“O jeito é esperar mais alguns meses até o próximo eclipse. Com certeza as Parcas saberão me dizer onde estão os malditos Talismãs. Senão ficarei furioso...”


Algo se mexia ao seu lado. Seth acabara de acordar de um sono conturbado e sentia a cabeça latejar da pancada da besta de Gary. Ele tentou se situar para relembrar o que tinha acontecido, mas a escuridão do lugar onde estava o atrapalhava, deixando-o mais sonolento. Uma fraca luz avermelhada de uma tocha pendurada na parede fazia sombras na parede oposta, que se contrastava com um vulto que estava na frente dela.
O vulto, o que quer que fosse, se mexia lentamente e provocava uma sombra enorme na parede contrária à da tocha. Ao se lembrar dos fatos recentes, Seth somou as circunstâncias: primeiro a perseguição, o encurralamento, a pancada, e aquele local sinistro. Ele havia sido capturado e levado para algum lugar, mas não fora morto. Por quê?
Então ele se lembrou de Wallace. De seu sacrifício para salvá-lo e de sua morte brutal. O garoto sentiu raiva. E aquele vulto, ao seu lado, só podia ser um policial ou um vigia. Seth precisava sair daquele tipo de prisão o mais rápido possível.
Virou o rosto lentamente para a direita. O vulto estava agachado de costas para ele, e seus braços denunciavam que ele estava revirando uma espécie de mochila no chão. A mochila de Seth.
O garoto desesperadamente tocou em seu peito e não sentiu o Talismã. Havia sido roubado. Lentamente agachou-se e pulou por cima do vulto, agarrando-o por trás.
O atacado fora pego de surpresa por Seth. Os dois berravam, um pedindo socorro e o outro exigindo seu pertence mais valioso de volta.
– Sai! Larga de mim, LARGA DE MIM!
– DEVOLVE... MEU... TALISMÃ!
Um soco certeiro do atacado atingiu Seth bem no meio do rosto, jogando-o longe.
– Você enlouqueceu? Do que está falando?
– Me devolve meu Talismã, seu desgraçado assassino!
– Mas do que...
Não teve tempo de terminar. Seth deu outra investida nele, dessa vez acertando a cabeça do outro na parede. O garoto arrancou o archote logo acima e apontou para o rosto do vulto.
– Vou falar pela última vez – disse Seth limpando um fio de sangue que saía de sua boca – ME DEVOLVE MEU TALISMÃ!
– Pare de gritar, seu idiota! – murmurou o outro – Os Fiscais vão vir aqui...
– Fiscais, é? Tá legal. E pare de mexer na minha mochila, assassino!
Seth puxou a mochila de uma vez e levou um susto.
– O que foi, não é a sua mochila? – riu o outro. Os dois se encararam – É a minha.
O garoto saiu de cima do vulto. Era apenas outro jovem, mais ou menos da mesma idade que ele, ruivo e com os braços mais avantajados que os dele.
– Ah, me desculpe, pensei que fosse...
De repente, vários homens fardados adentraram correndo aquele pequeno recinto e os imobilizaram.
– Fazendo confusão a essa hora da noite, mestiço? – disse um Fiscal loiro de hálito podre que puxava os cabelos de Seth para trás, com violência – Mal chegou e já faz confusão? Tsc, tsc, tsc.
Uma pancada forte no abdome, vinda de um porrete, o jogou no chão.
– Vai dormir, mestiço – falou o Fiscal loiro.
O porrete subiu no ar e desceu com violência na cabeça do garoto.
Seth desmaiou ali mesmo.


Uma fraca luz solar vinha do alto. Seth foi acordando com uma enxaqueca brutal e sentiu um frio piso de pedra. Lentamente pôs seus dedos na cabeça e constatou uma febre por baixo do couro cabeludo.
Vagarosamente, se sentindo um caco, se sentou. Não era a saleta de que lembrava antes de desmaiar. Era um local menor, abafado e com grades negras na frente. O garoto relembrou a cela na qual fora preso alguns dias antes e percebeu que as duas eram muito parecidas.
De repente um cheiro de comida invadiu suas narinas e ele notou um pequeno prato sujo à sua frente. Seth já estava morrendo de fome, e aquele cheiro só aguçava mais sua vontade. Não era uma comida das melhores, mas era comida e provavelmente a única que iria dispor naquele local.
Sem esperar mais, atracou-se com o pequeno prato e comeu vorazmente. O garoto achou que aquilo não era o suficiente para saciar sua fome, mas receou pedir um pouco mais a um guarda fardado do outro lado da grade.
– Você tem um apetite grande, temos que assumir...
Seth virou-se rapidamente e se arrependeu disso, que só o deixou zonzo. Depois de se sentir com a cabeça no lugar, ele encarou um outro rosto à sua frente, o outro garoto que dividia a saleta com ele no dia anterior.
– O que disse? – perguntou Seth.
– Que você tem um apetite grande. Não é todo mundo que come isso aí – respondeu o outro, apontando para o prato vazio – Isso que eles chamam de comida.
– Ah, vamos lá, ela não é tão ruim assim...
– Então você deve ser um amante da gastronomia, irmão...
Os dois riram juntos.
– Eu sou Seth – apresentou-se o garoto. – E você?
– Alex. Meu nome é Alex. Prazer, Seth.
– O prazer é meu...
Seth e Alex apertaram as mãos.
– A propósito, Seth, pode comer meu almoço. Não estou com fome.
– Ah, obrigado.
Depois de comer rapidamente, Seth entregou o prato a Alex, que o colocou perto da grade para que o guarda o buscasse.
– Alex, que lugar é esse? – perguntou Seth.
– Aqui? Bom, estamos agora na sala de detenção. Nossa, ah, confusão de madrugada nos rendeu um dia aqui.
– Detenção?
– É, é o que eles fazem com quem não se comporta. Tivemos sorte, já peguei um mês inteiro de detenção quando estivemos no Distrito do Fogo.
– Mas... onde estamos, exatamente?
– Meio difícil dizer – disse o ruivo – É uma espécie de prisão temporária, em que eles recolhem pequenos meliantes e outros que desobedecem a ordem nos Distritos. Vou fazer um ano preso aqui.
Seth sentiu um calafrio de pavor.
– Um ano? Caramba, o que você fez?
– Meu pai e eu morávamos sozinhos numa pequena fazenda no município de Nodengard, a alguns quilômetros de Fire City, capital do Distrito do Fogo.
“Nós dois não tínhamos uma condição financeira muito boa, vivíamos da agricultura de subsistência. De vez em quando meu pai ganhava alguns trocados e a gente ia pro centro de Nodengard, onde tinha uma pracinha com algumas atrações e, se me permite dizer, algumas garotas bonitas também.
“Acontece que o rei do Distrito do Fogo, sir Sanchez de la Bognia, decretou um aumento exorbitante dos impostos. Meu pai não podia pagar tudo aquilo. Para você ter uma idéia, Seth, os impostos aumentaram de vinte Lycandollars para cento e cinqüenta Lycandollars...
“Um dia, por meu pai não ter pago os impostos, os soldados da corte invadiram a minha casa e levaram quase tudo o que tinha. Meu pai ficou desolado, pois não podia impedir a ação daqueles canalhas. Mas eu não deixei passar. Tentei impedi-los eu mesmo, mas não consegui muitos resultados. Foi por isso que eles me trouxeram para cá um ano atrás.
– Mas passar um ano inteiro por causa de uma coisa simples dessa?
– Bom, é assim que funciona aqui. Por exemplo, fui capturado no Distrito do Fogo. Três meses depois todo mundo que estava lá numa prisão feito essa foi transferido para o Distrito do Ar. Do Distrito do Ar para o da Água, depois para o da Terra, e por último aqui no Distrito do Raio. Próxima semana nós todos vamos para o Distrito do Fogo novamente e lá nos julgarão. Quem tiver uma boa conduta é liberado. Quem não tiver, é preso numa cadeia oficial.
– E você teve uma boa conduta? – perguntou Seth, risonho.
– Não – riu Alex – Na verdade essa deve ser minha vigésima detenção.
– Mas não lhe preocupa que você possa ser preso oficialmente?
– Já me acostumei com essa idéia...
Um Fiscal passou em frente à cela e recolheu os pratos com estrondo. Com uma voz gutural avisou que os dois iam ser liberados no dia seguinte, pela manhã.
¬– Ótimo – disse Alex – Amanhã cedo está bom.
– Qual o máximo de tempo você já pegou de detenção? – perguntou Seth.
– Ah, duas semanas... Mas e você, Seth, porque está aqui?
– Bem, sou um mestiço. Eles me pegaram na fuga, no centro de Thunder City.
– Caramba... Me conta como foi!
Passaram o resto da tarde conversando sobre diversos assuntos. Seth teve o cuidado de não mencionar o Kathegetes Omega, mesmo que Alex parecesse uma boa pessoa. Não ia deixar acontecer a mesma coisa que aconteceu com ele e Wallace.
Com o passar das horas, os dois garotos iam ficando cada vez mais amigos. Seth não teve muito contato com outros garotos de sua idade na vida, por isso discutir diversos assuntos com alguém que pensasse parecido com ele era extremamente divertido e logo esqueceu sua dor de cabeça, retirando dela todas as suas preocupações recentes.
No dia seguinte o garoto acordou bem-disposto com um cutucão dado por Alex. O Fiscal de voz gutural abria a cela em que estavam ao mesmo tempo em que alertava uma nova detenção se houvesse confusão novamente. O que os Fiscais de lá não entendiam é como dois garotos que haviam brigado saíram da detenção mais felizes do que quando entraram.
Depois de passarem por um corredor extenso cheio de celas iguais à deles, Alex disse feliz:
– Vem, Seth, quero que você conheça algumas pessoas.
O extenso corredor terminava num galpão enorme, lotado de pessoas. Desse galpão todo revestido de pedras, entravam pequenos corredores que iam para as saletas em que cada um dormia.
– É sempre cheio assim? – perguntou Seth.
– Somente aqui – respondeu Alex – O Distrito do Raio é o ponto final. O Distrito do Fogo é o mais vago porque é o ponto inicial. E, na ordem que eu lhe falei ontem, vai aumentando gradativamente.
– Entendi...
As pessoas lá ficavam em grupos, recostados nas paredes. Assim, a passagem central ficava livre, que era monitorada por dezenas de Fiscais armados com bestas.
– Alex, você disse que queria que eu conhecesse algumas pessoas... – lembrou Seth.
– Eu sei, estamos quase chegando...
Mais ou menos na metade do galpão ficava algumas pessoas em grupos que o garoto supôs serem fogoanos. Segundo a descrição de Alex, o Distrito do Fogo era onde os três Sóis incidiam mais forte, conseqüentemente deixando os cidadãos mais bronzeados. Era lá que ficava uma maior concentração de negros e morenos. Somente uma pequena minoria, como Alex, era de pele branca.
À medida que andavam por ali, as pessoas cumprimentavam Alex, como se o conhecessem. E o ruivo cumprimentava de volta todas elas, com apertos de mão. Depois de alguns minutos, sentaram-se num canto do pé da parede e puseram-se a esperar alguém.
De tempos em tempos, Alex consultava um enorme relógio central no teto do galpão. Cerca de dez minutos depois, alguém sentou ao lado do ruivo.
– Desculpe a demora, Alex – disse uma voz jovem feminina – Demorei a acordar.
– Tudo bem – disse Alex – E a Kyra?
– Já está vindo – respondeu a garota – Não vai demorar, estava terminando de tomar o café.
A garota ao lado de Alex retirou o capuz do moletom e sorriu para o amigo. Tinha a mesma idade dos dois, aproximadamente. Ao colocar o capuz para trás, ajeitou os óculos de aros negros e passou uma das mãos no cabelo curto e cinzento.
– Hum, e que é esse? – perguntou ela.
– Ah, sim – lembrou Alex – Lila, este é o Seth. Seth, esta é a minha amiga Lila, a garota gênio...
– Não exagera, Alex – riu Lila – Prazer, Seth.
– Prazer – respondeu Seth.
Os dois apertaram as mãos. A garota então virou-se novamente para o ruivo.
– Alex, ouvi dizer que você pegou detenção de novo. O que foi dessa vez?
– Um mal-entendido entre eu e meu amigo aqui, o Seth. Fizemos um pouco de barulho de madrugada...
Os três riram.
– Mas eis quem chega finalmente! Kyra! Aqui! – acenou Alex.
Outra jovem da idade dos três veio correndo em direção a eles. De longe viu que ela possuía um corpo bonito e usava um lenço vermelho na cabeça.
– Me desculpem a demora – disse Kyra – O café hoje não estava bom... E aí, beleza? Quem é você?
– Seth – respondeu o garoto – Ah, conheci o Alex ontem e a Lila hoje...
– Prazer, então. Sou Kyra – disse a garota.
Apertaram as mãos, exatamente como Lila e ele.
– Alex, é verdade que você pegou detenção de novo? – perguntou Kyra, tirando o lenço vermelho da cabeça.
A garota era extremamente bonita. Para Seth, todo o galpão ficara mais bonito com a chegada dela. Mas ficou surpreso com os cabelos de Kyra. Eram compridos e lisos, levemente ondulados.
E azuis.
– Nossa, você tem cabelo azul! – exclamou Seth.
– É, é bem diferente mesmo – comentou Lila.
– Genético – explicou Kyra – Minha mãe também tem cabelo azul.
– Muito legal. Diferente, mas é bonito. – disse o garoto.
Então os olhos de Kyra e Seth se cruzaram e o estômago dele revirou.
Os olhos dela eram lindos olhos azuis. Mas não eram olhos comuns. Tinham um brilho diferente. Era um azul diferente, nem tão claro, nem tão escuro.
Era da cor de safira.
– Seth, você está bem? – perguntou Lila.
“Cassandra Futuro disse que todos eles estavam num mesmo lugar. Então, só pode ser...”, pensou Seth.
O garoto olhou para os olhos de Alex e viu pupilas da cor do rubi. E, com o coração à mil, olhou os olhos de Lila, onde a opala brilhava indagadora de volta para ele.
Seth não agüentou mais. Desmaiou na frente dos outros três.


Seth abriu os olhos devagar. Estava novamente deitado onde ele reconheceu como ser a saleta-quarto onde ele e Alex dormiam. Alguns sussurros incompreensíveis vinham da direção da porta e, à sombra de dois archotes, o garoto percebeu mais três corpos o observando.
– Caramba, já estou cansando de tanto desmaiar...
Alex, Kyra e Lila o olhavam preocupados da entrada.
– O que aconteceu?
– “O que aconteceu?”, ele disse – repetiu Alex – Seth você deu um susto e tanto na gente mais cedo...
– É, foi mesmo – confirmou Lila – Mas diz aí, Seth, você tem, sei lá, algum problema, ou doença que te faz desmaiar tanto?
– Que eu saiba não – respondeu ele – Mas hoje eu desmaiei de surpresa e felicidade...
Os três se entreolharam.
– Como assim? – perguntou Kyra.
Antes de responder, Seth se levantou e conseguiu abraçar os novos amigos, todos de uma vez.
– Porque eu achei vocês... Eu finalmente achei vocês! Pensei que fosse demorar muito mais, pensei que fossem mais velhos ou mais novos... Mas somos todos da mesma idade! Mais uma peripécia do destino...
Alex se afastou rindo.
– Cara, você enlouqueceu? Que conversa estranha, meu...
– É, tem razão, do que você está falando?
Seth desfez o abraço sorrindo.
– Realmente, Lila, preciso contar a vocês a minha história, aí vão entender... Ela só é meio longa, nós temos tempo?
– Se não houver barulho, os Fiscais não vão nem se incomodar... – informou Kyra.
Os quatro se sentaram no pé da parede, embaixo de um dos archotes.
– Sinto muito não ter mencionado essa parte a você, Alex, mas minhas experiências recentes confirmaram que confiar em qualquer um quase sempre dá errado...
– Não, tudo bem – disse Alex – Pode começar.
Seth pigarreou.
– Bom, tudo começa no começo da semana passada, onde eu descobri fatos sobre minha vida que eu desconhecia até então. Mas não são fatos comuns. São extraordinários, até. Vou tentar resumir tudo para vocês, de um jeito que fique melhor de entender, e, por favor, dúvidas só no final. Certo?
“De início, saibam que nem tudo o que sabem sobre Samuel Lycan é verdade. Há pontos obscuros na vida dele que poucos conhecem. Na realidade, ele não matou os filhos e se arrependeu. Não, não. Ele foi até o fim para saber onde os Talismãs estavam escondidos.
“Ao descobrir que esses objetos foram muito bem guardados nos castelos dos Distritos, e que seu filho, Derek Lycanthunder, antes de morrer jurou que mil anos depois voltaria para destruir o pai, Lycan resolveu se submeter a um sono profundo e esperar mil anos até que a reencarnação do filho venha para destruí-lo.
“A pessoa que viria como a reencarnação de Derek foi chamada de Kathegetes Omega. A missão dele é encontrar os descendentes dos filhos de Lycan e, juntos, pegar os Talismãs antes que Lycan os pegue primeiro.
Seth ia continuar falando, mas Kyra o interrompeu.
– Certo, e onde a gente entra nisso?
– Não é claro? – perguntou o garoto – Vocês são os descendentes de Lycan!
Alex teve um acesso de riso misturado com uma forte tosse.
– Nós? Descendentes de Lycan? – e riu novamente.
– Como você tem certeza disso? – perguntou Kyra.
– Existe um livro, escrito por Cassandra Futuro, uma das Ciganas do Oráculo – explicou Seth –, que dá as características exatas dos herdeiros. Ela menciona a cor dos olhos deles, que correspondem às cores de pedras preciosas.
O garoto se levantou.
– O Alex, por exemplo, tem olhos da cor do rubi...
– Tem mesmo – confirmou Kyra.
– Não tenho não – defendeu-se o ruivo – Quer dizer, acho que tenho sim... Nunca reparei nisso antes.
Seth virou-se de joelhos.
– Kyra, você tem olhos de safira... E a Lila tem olhos de opala!
– Caramba... É mesmo... – disse Alex, olhando para as amigas.
– E a cor do cabelo também – continuou Seth – O Herdeiro tem a cor de seu cabelo da cor que representa seu elemento. Alex, seu cabelo é vermelho porque simboliza o fogo. O da Kyra é azul da água. E o da Lila é cinzento do ar!
Kyra também ajoelhou-se.
– O seu, Seth, é loiro que representa o...
– Raio. Junto com meus olhos, que são da cor do topázio.
– Talvez faça sentido – disse Alex – Mas como provar?
– Ele tem razão.
Lila, que estava calada, recuperou-se de seu transe.
– Por quê?
– Porque eu já li o livro de Cassandra Futuro. O Seth realmente é o Kathegetes Omega. Tem todas as características de descendente de Derek Lycanthunder.
Seth sorriu. Alex e Kyra ficaram pensativos.
– Eu acredito na Lila – disse Kyra – Conseqüentemente eu acredito em você também, Seth.
– Obrigado...
– É... Eu também – murmurou Alex.
– Mas, Seth, a missão do Kathegetes é seguir o mundo atrás dos Talismãs – alertou Lila – Como vamos andar por aí se não podemos nem sair daqui?
– Não se preocupem – disse Seth – Eu tenho um plano.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Capítulo Quatro - A Partida e a Captura

SETH ACORDOU INDISPOSTO AQUELE DIA. AGORA PASSAVA várias horas treinando incessantemente com as espadas, que jaziam no canto do quarto. Desceu para a cozinha, mas a sua surpresa foi ver o avô fazendo o café da manhã, feliz da vida.
– Ah, o senhor está aqui? – perguntou o garoto, cansado – Pensei que tivesse dito que ia viajar...
– E eu ia – respondeu Josef, risonho – Mas hoje é um dia especial e eu não poderia viajar assim.
– Dia especial? Como assim?
O avô encarou Seth nos olhos e encheu o peito de orgulho com o que ia dizer, mas só pelo brilho dos olhos amarelos de Josef, o garoto já sabia o que ele ia dizer.
– Hoje é o grande dia! O dia em que você vai atrás dos Talismãs!
Seth rodou os olhos para cima.
– Vô, já conversamos sobre isso... eu acho que não estou pronto ainda para isso. Quero dizer – disse ao ver a cara de desaprovação do avô –, não sei o que me espera lá fora. É um mundo bastante grande, sabia?
– Eu sei, mas...
– E outra coisa, posso demorar anos para achar os herdeiros. Porque eu sei que não vou conseguir passar pelos tais titãs sozinho. Mesmo com as habilidades novas do Talismã.
Josef encarou o chão, desapontado.
– Mas você está treinando há uma semana! E está se saindo muito bem. Eu tenho fé nos Deuses de que você vai encontrar seus companheiros muito em breve... Mas você não quer tentar, Seth!
– O senhor falando desse jeito até parece que quer a minha saída. Que eu vá embora...
O avô contornou a mesa e abraçou o neto. Um abraço forte, que comoveu o garoto.
– A última coisa que eu queria é que você fosse embora, Seth. Mas não temos escolha. O planeta está em perigo. E, infelizmente, só você pode impedir isso. É uma judiação fazer isso com um adolescente, mas não podemos fazer nada...
De repente, algo quente e molhado pingou na cabeça de Seth. Torcendo para que não fosse o que ele estava pensando, outros pingos vieram em cascata, seguidos de um barulhinho fino do nariz do avô.
Querendo mais do que tudo sair dali, o garoto deu graças aos Deuses quando a campanhia tocou e Josef foi atender limpando o nariz no avental de cozinheiro.
De seu quarto, para onde foi o mais rápido possível, Seth ouviu o avô conversando com a Sra. Diaz, enquanto ela perguntava se estava tudo bem com ele.
O garoto ficou encarando o teto do sobrado e pensou muito sobre a busca dos Talismãs.
– O Josef deve ser extremamente devoto aos Talismãs para deixar-me ir enfrentar o mundo. Ele tem razão, Lycan realmente deve ter acordado, embora não faça muito sentido. Mesmo assim, eu vou hoje. Arrumo minhas coisas e à tarde eu parto.
Seth virou-se na cama e encarou um retrato antigo de seu pai e sua mãe.
– Vovô, espero realmente que esteja certo.


A manhã na casa de Josef foi dedicada inteiramente para a procura de qualquer coisa que Seth pudesse levar na jornada. O máximo de roupas possível, comida, objetos de higiene pessoal, outros pertences adjacentes, o Talismã e as espadas.
– Como nós vamos levar tudo isso... nisso? – disse Seth, segurando uma mochila um tanto velha, mas bastante resistente.
– Bom – disse o avô, encarando a pilha de coisas –, se você perceber, nas laterais da mochila eu costurei suportes para você encaixar as espadas. Assim não precisa levar na mão.
– Vô, você é um gênio. Mas e o resto das coisas?
– Hum... Vamos ver... Teremos que cortar algumas coisas desnecessárias...
– Pensei que já tivéssemos feito isso – disse o garoto, risonho.
– Realmente, você tem razão – disse o avô, rindo – Tiraremos a comida. Seth, você colocou muita comida aí.
– Isso é o mínimo para me manter vivo durante um mês, mais ou menos...
– Pelo o amor dos Deuses, aí tem comida para alimentar uma família inteira por um mês!
– Qual é, não tem tanto assim...
– Não, não, não! A gente tira a metade disso aí. Acho que cabe o resto junto.
– A metade? – disse Seth – Aí eu volto daqui a quinze dias para pegar mais...
– Numa emergência, a Sra. Diaz deixou uns bolos aqui para você. Quando ela passou mais cedo.
– Como assim, ela sabe que eu vou... partir?
O avô pareceu pensativo.
– Você sabe que praticamente só temos contato com ela, não é? Alguns anos atrás eu emprestei o livro de Cassandra Futuro a ela, e a Sra. Diaz acreditou na história verdadeira de Lycan. É, meu neto, ela sabe que você é o Kathegetes Omega e conhece sua missão.
– E o que ela disse a respeito disso? – perguntou o garoto.
– Que vai rezar todos os dias aos Deuses para que você se saia bem e consiga juntar os Talismãs. – disse o velho, por fim. – Bom, vamos terminar e almoçar? Estou morrendo de fome.
– Eu que o diga – falou Seth, sorrindo.
Josef e Seth terminaram juntos a arrumação e foram almoçar. Depois de um rápido descanso, começaram a se preparar para a partida. A mochila parecia estar carregando o mundo inteiro dentro de tão pesada, e ficava um pouco desconfortável andar com as espadas penduradas nas laterais.
– Mas, tirando isso, tudo certo – disse Seth por fim.
Avô e neto ficaram se encarando um tempo, até o garoto quebrar o silêncio.
– Bom, é isso. Já está na hora... Tudo bem, vô?
Josef estava parado encarando Seth, então de repente começaram a cair lágrimas de seus olhos amarelos. Com o peito estufado disse:
– Eu sempre sonhei com esse dia... E ele finalmente se realizou. Obrigado, Seth.
E os dois se abraçaram mais uma vez, só que dessa vez mais demoradamente. Seth também deixou uma ou duas lágrimas rolarem por seu rosto antes do avô lhe surpreender com uma afirmação:
– Eu te amo, meu neto.
– Eu também, vô.
E ficaram ali, abraçados, até o avô se lembrar de que o garoto precisava partir.
– Bom, eu queria ir com você, mas – Josef pigarreou – não dá. Ah, eu já ia me esquecendo...
O velho foi até o interior da casa e voltou com uma pequena bolsa de couro.
– Tome, para você.
– O que é? – perguntou o garoto, remexendo a bolsa nos dedos.
– Mil Lycandollars.
A bolsa caiu no chão com estrépido, fazendo um barulho baixinho.
– Mil Lycandollars? MIL? O senhor enlouqueceu?
Josef deu uma risadinha fina.
– É, Seth. Para bancar as despesas da viagem que você tiver. Só não gaste tudo de uma vez, hein?
– Mas vô, é todo o dinheiro das economias...
– Não tem problema, vou morar sozinho agora, tem o dinheiro da aposentadoria e, numa emergência, tem a Sra. Diaz bem aqui do lado. Pegue a bolsa e guarde bem, certo?
Seth sorriu.
– Seu velho doido...
– É a idade, as pessoas vão ficando mais birutas...
Um último abraço, recomendações de última hora, checagem rápida das coisas e mais nada precisava ser feito na casa. E foi com uma sensação de desconforto que Seth cruzou o arco da porta e saiu.
– Boa sorte, Seth! – gritou a Sra. Diaz da casa dela.
A filha da vizinha, um bebezinho nos braços da mãe, também acenava.
– Obrigado, Sra. Diaz!
A placa do vilarejo Derghan parecia estar bem longe. Foi aí que o garoto percebeu que nunca notara a beleza do jardim da vila. Quando voltasse iria aproveitar mais a vida, como nunca fizera de verdade.
Ao passar pela placa, pôs a touca para esconder as orelhas e os óculos escuros para impedir a visualização de seus olhos de cobra. Uma última olhada na vizinha que ainda acenava, Seth caminhou pela trilha, sem olhar para trás.


Como era a primeira vez que visitava o Distrito do Raio, o garoto resolveu passar em Thunder City antes de prosseguir viagem. Nunca estivera nas cidades grandes; nos outros Distritos sempre morara no subúrbio, para não dar na vista.
Thunder City era, de longe, a coisa mais incrível que Seth jamais vira na vida. Centenas ou até milhares de pessoas andavam por aquelas calçadas, onde outras centenas de vendedores e mercadores se aglomeravam para tentar vender seu produto. Seth se sentiu tentado a comprar um monte de coisas, mas ao perceber que não havia espaço na mochila e que tudo o que vira era somente bugigangas, preferiu apenas olhar, embora a mão ficasse coçando para usar os mil Lycandollars dentro da bolsinha de couro. Nunca tivera em mãos tanto dinheiro na vida.
Também tentava focalizar os rostos de cada pedestre que passava por ele. Seguindo a orientação de Josef, os herdeiros de Lycan geralmente tinham olhos da cor de pedras preciosas ou semi-preciosas. Mas todas as pessoas pareciam ter olhos comuns, castanhos, negros, azuis e verdes. E nada de olhos especiais.
Absorto em seus pensamentos, tropeçou em alguém no meio da rua.
– Ei, garoto, olha por onde anda!
– Desculpe, senhor – disse Seth. Então percebeu que havia uma aglomeração de pessoas na calçada, todos com ponta dos pés, tentando olhar algo um pouco mais adiante.
– Eh.. com licença – pediu ele ao homem no qual tropeçara – O que está acontecendo ali adiante?
– Não sei, também quero ver – disse ele, mal-humorado.
O garoto se esticou para ver o que era. De longe, parecia ser uma pessoa fazendo uma demonstração de alguma coisa.
Com alguma dificuldade, Seth atravessou a multidão para chegar mais perto. Então foi surpreendido com uma salva de palmas enquanto um homenzinho se curvava logo adiante para agradecer.
– Agora, meu próximo número... – disse ele.
O homenzinho tirou uma bola vermelha de dentro de sua capa roxa e ficou brincando com ela de aparecer e desaparecer em suas mãos. A cada novo truque o público aplaudia cada vez mais, e o garoto acabou ficando por lá mesmo, assistindo.
Depois de várias mágicas, o homenzinho parou para descansar e algumas pessoas saíram, deixando Seth mais próximo do palco. Como estava próximo, conseguiu falar com o mágico.
– Muito legal isso que você fez – disse ele – Como faz?
O homenzinho riu.
– Meu rapaz, um bom mágico nunca revela seus truques!
– Eu queria aprender...
– Você não tem cara de mágico – falou o outro – Tem cara de aventureiro. E além do mais... Ei, cuidado!
De repente, um cotovelo protuberante atingiu Seth no rosto, quebrando os óculos bem no meio. Caiu no chão atordoado, mas sentiu o peso da mochila saindo de seus ombros...
– Volta aqui com a minha mochila! – gritou ele para um homem que, atracado com a mochila de Seth, vencia a multidão e saía para a rua.
O garoto se levantou rapidamente e se pôs a correr o mais rápido que podia, derrubando pessoas e algumas lojinhas postas na calçada.
Mesmo com um peso grande nos braços, o homem ainda corria rápido. Depois de se ver livre do aperto das pessoas, Seth quase voou atrás do ladrão, que distanciava cada vez mais.
Depois de um tempo correndo sem cansar, o ladrão parou no final da calçada, onde começava uma avenida altamente movimentada. O Kathegetes facilmente o alcançou, agarrando o seu ombro, pronto para revidar qualquer ataque do assaltante. Mas algo muito estranho aconteceu.
Um impulso elétrico saiu do Talismã em seu peito, percorreu seu tórax, seu braço e o ombro do ladrão. O homem soltou a mochila dos braços e se ergueu no ar, a uns cinco metros do chão e caiu com estrondo no meio da avenida.
Espantado com o que acontecera, Seth caiu sentado no chão e sentiu a touca deslizar para fora de sua cabeça. Já ia recolocá-la, mas um estrondo seguido de um baque surdo tirou todos os seus pensamentos da cabeça. Uma carruagem passara inteiramente por cima do assaltante, que agora estava imóvel no chão e jorrando sangue.
O garoto deu um grito estridente ao ver que o ladrão poderia estar morto no chão. De repente, algo agarrou sua cabeça e o ergueu do chão. Espantado, virou-se e se deparou com um negro gigante de mais de dois metros e uma cara nada amigável.
– Como isso aconteceu? – perguntou o negro, que era policial.
– Isso o quê?
– Não se faça de idiota, garoto. Como aquilo aconteceu? – disse ele, apontando para a avenida.
Agora a avenida toda parara e um grupo de policiais interrogava o cocheiro da carruagem que atropelara o assaltante. Um outro grupo examinava o ferido no chão. Um policial desse grupo chamou o negro:
– Gary, vem cá!
Seth caiu no chão com estrépido. Gary, o policial, foi até o grupo e sua voz grave ressoou:
– Como ele está?
– Muito mal – disse um dos policiais – Mas está vivo. Precisa ir pro hospital imediatamente.
Um outro policial veio correndo na direção do grupo:
– Ei, Gary! Precisa saber de uma coisa!
Os dois conversaram baixo, mas o outro policial ficava o tempo todo apontando para Seth. Antes que tivesse tempo de reagir, Gary correu e o levantou pela gola da camisa, exatamente como Roger fizera antes.
– Como você fez isso? – perguntou ele, ameaçador – Que tipo de mágica você estava usando, hein moleque? Me fala! Me...
Então seus olhos se arregalaram enquanto olhava para Seth. Instintivamente, o garoto pôs a mão na cabeça e não sentiu a touca.
– Droga...
Gary o soltou e, o mais rápido que pôde, agarrou a mochila e se pôs a correr, enquanto o policial gritava para os outros:
– Ele é um mestiço! Peguem-no!
Não adiantava correr muito com todo aquele peso nas costas. O garoto preferiria manter o pique, mas os policiais corriam rapidamente e alguns até já estavam entrando em carruagens.
– Não adianta correr! – a voz grave de Gary ressoava lá de trás – Anda, me dá uma besta!
A flecha errou a cabeça de Seth por pouco. O garoto tentou apressar mais o passo, mas era impossível. Então ouviu uma gritaria lá atrás, mas preferiu não olhar, pois mais flechas cortavam o ar na sua direção.
– Desgraçado! – gritou Gary – Vão atrás do garoto, eu cuido desse cara!
Não resistindo à curiosidade, Seth olhou para trás. Viu rapidamente o que parecia ser um homem montado num tipo de animal e...
BAM.
A mochila caiu com muito barulho no chão, ao passo que o garoto berrava de dor depois de bater de encontro com uma parede. De ouvido na calçada, sentiu um policial se aproximar dele. O mais rápido que conseguiu, se colocou de pé e apertou as duas espadas em suas mãos.
O oficial, um tanto roliço, apontava uma besta para ele, carregada com uma flecha pontiaguda. Seth ergueu as espadas em posição de ataque.
O policial riu.
– Vamos ver se a sua espada é mais rápida que a minha flecha!
– Vamos ver... – murmurou o garoto.
Já estava pronto para atacar, quando um barulho de objeto cortando o ar e rasgando uma roupa, somado a um jorro de sangue no rosto do garoto o fez soltar as armas, ao passo que o policial largava a besta no chão e apalpava o peito. O oficial havia sido trespassado com uma adaga.
Com um ruído seco, o homem caiu no chão e o garoto pôde ver o cabo da adaga que o acertara pelas costas. Erguendo um pouco a visão, teve a impressão que vinha em sua direção um monstro gigantesco. Já estava recolhendo as espadas novamente quando uma voz conhecida gritou para ele:
– Venha, Seth!
Uma mão o puxou para cima do monstro. Desesperado, tentou se livrar, mas a voz falou novamente:
– Calma, sou eu, Wallace Vankster.
Seth parou de se debater e encarou o rosto do homem que o traíra.
– Wallace? O que faz aqui?
– Salvando a sua vida – disse ele. E mostrou um conjunto de adagas em sua mão.
– Foi você que matou o policial?!
– Ou ele, ou você.
George andava rápido, embora estivesse com mais bugigangas do que nunca.
– Para onde nós vamos? – perguntou o garoto.
– Primeiro sairemos daqui.
Wallace ateou o gromt mais depressa. Desesperado, Seth olhou para trás e viu uns quinze policiais vindo atrás deles, todos dentro de uma carruagem.
– O que faremos?
– Faça o mesmo o que você fez contra aquele cara lá na feira.
– Eu não sei como eu fiz aquilo... Eu só fiz, entende?
– Sei – disse Wallace, contrariado – Faça o seguinte: pegue as rédeas do George; vou tentar acertar alguns policiais.
Com alguma dificuldade, os dois trocaram de lugar em cima do gromt. Virado para trás, Wallace atirava adagas nos oficiais. E o horrível som de algo pontiagudo penetrando na carne confirmava que o mercenário estava acertando o alvo.
– Wallace! Wallace! – berrou Seth.
– Que é?
– Socorro!
– Que m.. – e se virou.
O gromt se dirigia para a beira de um penhasco. Desesperado, Wallace apertou as rédeas de George para que ele mudasse a direção. Mas uma flecha cortou o ar e atravessou a cabeça do camelo de três corcovas.
Um barulho de centenas de objetos metálicos caindo no chão ressoou nas montanhas enquanto Wallace e Seth caíam com estrépido no chão.
– Mas que m... – praguejou o garoto.
Wallace berrou ao ver seu animal de estimação e montaria morto no chão e jorrando sangue.
– Desgraçados... Vão me pagar...
– Wallace, e agora? O que vamos fazer?
O mercenário virou-se de uma vez e, com a mão cheia de adagas, correu na direção da carruagem policial.
– Wallace, não! – berrou Seth, inutilmente.
Da estrada, o homem lançou uma adaga e acertou em cheio um dos cavalos da carruagem. Como o outro não conseguiria levar o meio de transporte sozinho, os oficiais foram obrigados a descer. E juntos, um grupo saiu armado com bestas.
– Podem vir... – e jogou uma adaga, errando por pouco o policial Gary – seus... – e lançou outra adaga, atingindo em cheio o peito de um deles – desgraçados!
Uma chuva de flechas veio na direção de Wallace, mas ele desviou com uma esquiva quase inimaginável.
– Wallace, venha! Proteja-se! – gritava Seth.
Depois de alguns minutos, Wallace deparou-se com as mãos vazias, sem adagas. Aproveitando que possuíam uma aljava toda carregada de flechas, os policiais, que agora eram sete, atiravam sem parar no mercenário, que se protegia atrás do gromt morto.
– Já chega – murmurou ele.
Empunhando uma espada retirada do monte de bugigangas de George, Wallace correu na direção dos policiais, desviando as flechas com uma habilidade incrível.
– Morram desgraçados! – berrou o mercenário.
Mas não chegou a ficar perto o suficiente para atingir um dos oficiais. Uma flecha certeira, lançada por Gary, atingira Wallace no ombro, derrubando-o junto com a espada no chão.
– NÃO! WALLACE! WALLACE! – berrou Seth, empunhando as espadas e se dirigindo ao amigo caído.
Cinco policiais foram em cima de Wallace, enquanto Gary e um outro correram na direção do garoto. Seth estava pronto para atacar quando, de esguelha, viu os outros cinco policiais atirarem flechas contra o corpo caído do mercenário no chão.
– SEUS DESGRAÇADOS! VÃO PAGAR POR ISSO!
O garoto correu contra o policial que estava na frente e o atacou. As lâminas das espadas cortaram a besta no meio e, por meio de um impulso elétrico, fizeram com que o oficial se erguesse no ar e fosse parar longe.
Parou abruptamente e olhou as suas espadas. Uma espécie de corrente elétrica circulava as lâminas, como pequenos raios. Então uma flecha lançada por Gary logo à sua frente o tirou de seus devaneios e fez Seth cortá-la no ar com um golpe.
– Malditos... Vocês o mataram... VOCÊS O MATARAM!
– E essa vai ser a sua vez, mestiço imundo – disse Gary.
O policial buscou por uma flecha na aljava presa às suas costas, mas não achou nada.
– Mas que m...
– O que aconteceu? – Seth riu ironicamente – Acabou a munição?
Gary encarou o garoto.
– Posso acabar com você sem munição, mestiço.
– Prove!
Seth correu na direção do policial com os braços estendidos e um ódio mortal. Mas um movimento rápido de Gary o pegou de surpresa. A besta vinha voando a toda velocidade em sua direção.
BAQUE.
Um ruído surdo. E tudo se apagou.